Antonio Risério quer vingar a memória de Spinoza, exigindo objetividade, imparcialidade e demais valores epistêmicos que pós-modernos porcamente atacaram.
Talvez é arriscado começar esta resenha do novo livro de Antonio Risério com considerações identitárias. Com a desculpa de que talvez seria divertido, fá-lo-ei.
Risério e eu somos bichos de espécies diferentes. Ele, um claro monstro das referências culturais brasileiras e latinas, transita com facilidade entre séculos, décadas e biografias do nosso milieu cultural. Vejo Risério falando e escrevendo sobre essas coisas com a admiração de um pupilo ignorante, com o gosto de observar, finalmente, com genuflexão e tudo, dando graças mesmo, alguém que tem algo a dizer sobre essas coisas. Para minha pessoa, cientista debutante, Risério é o presente que eu pedi ao meu inexistente Deus.
Falo dele e de mim, e da nossa diferença de ninho intelectual, pois foi uma forçosa convergência que nos trouxe ao mesmo ponto, ele autor e eu leitor, nesta obra. Essa convergência consiste na nossa oposição à política identitária, cada qual em seu irônico e rejeitado lugar de fala, de uns anos para cá. Ele se cansou dos pequenos stálins de diretório central de estudantes das universidades federais. Eu me cansei de ataques à compreensão pública da ciência em nome da “justiça social”. Cansamos, mas não vamos largar o osso. E ambos pensamos que Bolsonaro está onde está como resultado do besteirol identitário e relativista, entre outros motivos, mas, se há um motivo intelectual, é esse: retaliação conservadora a loucuras identitárias.
Não é a primeira vez que Risério, da seara da história, antropologia e humanidades associadas, detecta a ameaça da política identitária e a ataca com propriedade. Meu primeiro contato com ele foi nas redes sociais, quando ele deu uma resposta calmamente arrasadora sobre as esperanças dos que ele chama de “neonegros” de reescrever a história para cooptar todo o Egito antigo para sua obsessão “afrocentrada”. Escreveu Risério em 2017, antes do Relativismo, na Folha de S. Paulo: “[O] faraó Sesóstris III gravou esta inscrição acima da segunda catarata do Nilo: ‘Nenhum negro atravessará este limite por água ou por terra… salvo se para comerciar.’” A verdade mais complicada é que o Egito era composto em grande parte por mulatos de outro tipo que os daqui.
Refrescantemente, Risério não tem pudor nenhum de desobedecer ao autoritarismo identitário e suas falsas etimologias ao dizer “mulato” (além de “bicha”, “sapatão” e outras palavrinhas proibidas). Não há interesse nosso de comemorar a antiga intolerância de Sesóstris III, mas de dar munição intelectual para aqueles que sabem que é autoritária e indesejável a tentativa de refundar o pensamento social e a opinião pública com base em análises rasas de dicotomias dogmáticas de opressores vs. oprimidos, patriarcado vs. mulheres, heterossexuais vs. LGBT, supremacia branca vs. movimento negro unificado, e a pseudo-complexificação dessas dicotomias na forma de uma “teoria interseccional”.
Relativismo é um basta. É um sermão, no melhor sentido possível, de um mestre ao mesmo tempo exasperado e brincalhão. Um mestre de fala mansa, cabelos brancos e bengala, mas uma mente mais afiada e preparada que a de todos os seus adversários intelectuais. Risério quer vingar a memória de Spinoza, nos levando de volta ao ponto de vista da eternidade, exigindo objetividade, imparcialidade e demais valores epistêmicos que pós-modernos porcamente atacaram. Ao mesmo tempo, é simplesmente brasileiro, nos conta das nossas heranças, dos terreiros de macumba (que ele me ensinou que não é “instrumento musical” coisíssima nenhuma), do samba, dos índios. Dá um complemento furioso, delicioso e contemporizador ao História da Riqueza no Brasil de Jorge Caldeira, na minha opinião. Ganha de mim um “bravo!” e quatro estrelas e meia em cinco.
A meia estrela que falta é menos enfática que os elogios acima. Risério é um pensador de extremo cuidado. Alguém pode pensar, como eu pensei ao ler o título, que está diante de um uso hiperbólico de “fascismo” e, como tal, manco no valor-verdade. Mas Risério explica: não é nenhuma aplicação de teoria acadêmica de quais são as condições necessárias e suficientes para chamar alguma coisa de fascismo, mas uma aplicação interessada nos indissociáveis aspectos autoritários e agressivos dos movimentos identitários pós-modernos em voga. Da minha parte, prefiro falar em “autoritarismo” mesmo, e evitar a hipérbole, ainda que seja meramente interpretativa, e minha escolha mais insípida. Corro o risco de ser um “politicamente correto das hipérboles” ao expressar essa pequena divergência, mas aí está (aliás, aplico a mesma ressalva aos famigerados dois lados chamados de fascistas no livro). Outro motivo da meia estrela faltante é a ausência de índice remissivo. Risério é uma tapeçaria rica de fios a serem puxados para saber mais, e a Topbooks dificulta nosso trabalho nisso ao não nos dar esse índice.
Comprem e leiam. A saúde nas nossas conversas sobre o Brasil agradece.
Eli Vieira
Biólogo (UnB), geneticista (UFRGS e University of Cambridge), humanista, pensador.
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