A tendência a enxergar a atividade intelectual como uma prática que visa a “redenção” da sociedade despejou nas nossas melhores universidades hordas de militantes que não têm a menor ideia do que é o espírito de scholarship próprio à vida intelectual.
“Ao abolir o irracional e o irreparável, a utopia se opõe também à tragédia, paroxismo e quintessência da história. Qualquer conflito despareceria em uma cidade perfeita; as vontades seriam estranguladas, apaziguadas e milagrosamente convergentes; reinaria somente a unidade, sem o ingrediente do acaso ou da contradição. A utopia é uma mistura de racionalismo pueril e angelismo secularizado”
Emil Cioran em História e Utopia
Poucas coisas no meio acadêmico me incomodam mais do que essa tendência que os intelectuais têm para querer dizer como o mundo “deveria ser”.
O papel daqueles que se dedicam a pensar, pesquisar e escrever é, fundamentalmente, o de tentar explicar a realidade como ela é e o de fomentar o gosto pela erudição. É claro que existem disputas (saudáveis) para estabelecer a explicação mais satisfatória daquilo que a realidade é, mas essa atitude compreensiva, que é a essência das ciências humanas, não tem, necessariamente, nenhuma relação com o anseio militante de “transformar o mundo” que anima a maior parte dos estudiosos dessas áreas.
O entranhamento da posição marxista de que não se deve apenas “interpretar” o mundo, mas também “transformá-lo”, é tão intenso nesse meio que, mesmo intelectuais que não são marxistas e não se definem assim, acabam reproduzindo esse cacoete, que virou, por uma série de razões, um verdadeiro senso comum naturalizado no comportamento e no pensamento daqueles que trabalham com as humanidades. Existe, no meu entendimento, uma incompatibilidade entre o distanciamento (que não tem nada a ver com neutralidade) que é necessário para interpretar a realidade social e a atitude política de preocupação com a mudança de tal realidade.
Marx que me perdoe, mas a busca da compreensão do mundo não tem, obrigatoriamente, nenhuma “relação dialética” com a sua transformação. E pior: muitas vezes, essa demanda de “transformação social”, pelas concessões ideológicas que obriga as pessoas a fazer, pela limitação à liberdade acadêmica que impõe e pelo discurso contraído e simplório baseado em chavões que costuma difundir, trabalha no sentido de impossibilitar a atividade intelectual. Certas modalidades de militância política são verdadeiras catalisadoras do anti-intelectualismo puro e simples; e o mais triste nisso tudo é que, em muitos casos, essas modalidades têm a chancela de instituições de pesquisa e ensino prestigiosas e, não raramente, se utilizam de dinheiro público para financiar seus quadros.
Recorrentemente, nós vemos intelectuais que, ecoando esse ethos “marxista”, atrelam inteiramente a sua atuação no espaço acadêmico (e às vezes no espaço público mais amplo) ao desejo de modificar os comportamentos das pessoas, de dizer como elas devem pensar, quais são as “boas ideias”, os “valores justos”, os “ideais corretos”, as formas de linguagem “apropriadas”, os grupos sociais com demandas “legítimas”, o “lado certo da história”, etc. Ou seja: estamos diante do moralismo de uma espécie de “clero secular”.
Vários autores já apontaram que a modernidade, ao invés de provocar uma laicização de todos os aspectos da vida humana, nos traria, no terreno intelectual, uma secularização do comportamento clerical (isso, aliás, ficou bem ilustrado pelo papel das elites intelectuais nos acontecimentos de 1789 e 1917), afinal, não tem nada mais próximo do comportamento clerical do que o comportamento de um intelectual engajado.
No caso brasileiro, a tendência a enxergar a atividade intelectual como uma prática que visa a “redenção” da sociedade, que é generalizada nas humanidades na academia, acabou despejando nas nossas melhores universidades hordas de militantes que não têm a menor ideia do que é o espírito de scholarship próprio à vida intelectual, e que entendem, única e exclusivamente, que a função da atividade acadêmica é a de fornecer justificativas intelectuais para a militância política.
Essa tendência é relativamente antiga na história ocidental. Contudo, no século XX, o envolvimento de intelectuais com ideias políticas atingiu um novo patamar de importância histórica e de consequências trágicas. Se analisarmos as duas piores experiências totalitárias do século passado, o nazismo e o comunismo, constataremos que ambas são, entre outras coisas, tentativas de colocação em prática de ideias formuladas por intelectuais. A crença iluminista de que a razão, o esclarecimento e as atividades intelectuais formais levam, necessariamente, a um “mundo melhor”, não passaria pelo crivo da experiência histórica do século XX.
A ideia de que os seres humanos poderiam ser modificados por uma experiência “revolucionária” conduzida por uma elite esclarecida que criaria “homens novos”, tão presente nas crenças utópicas da intelectualidade ocidental – especialmente naquela mais identificada com a esquerda – foi comparada, pelo filósofo John Gray, em seu esplêndido livro-ensaio, “The Silence of Animals”, de 2013, à crença em discos voadores (sim, é isso mesmo!).
Gray cita, na referida obra, um estudo conduzido pelo psicólogo Leon Festinger e outros dois colaboradores (Henry Riecken e Stanley Schacter), intitulado “When Prophecy Fails”, que foi publicado em 1956. Festinger e seu grupo estudaram uma seita apocalíptica liderada por uma mulher de Michigan (EUA) nos anos 1950. Essa mulher alegava ter recebido mensagens de inteligências alienígenas anunciando o fim do mundo, que ocorreria, segundo ela, nas horas anteriores à madrugada do dia 21 de dezembro de 1954. A mulher e seus discípulos deixaram suas casas, empregos, familiares e bens com o objetivo de estarem prontos para o desembarque de um disco voador que, supostamente, iria resgatá-los do planeta condenado na noite do apocalipse.
O líder desse grupo de psicólogos ficou conhecido por formular a teoria da “dissonância cognitiva”. De acordo com a teoria, os seres humanos não lidam com crenças e percepções conflitantes testando-as contra os fatos. Eles, na realidade, reduzem o conflito através da reinterpretação dos fatos que desafiam as crenças às quais são mais apegados.
Com o objetivo de testar a teoria, nos conta Gray, Festinger e seus colaboradores se infiltraram na seita e observaram a reação de seus membros quando o apocalipse deixou de ocorrer. Assim como a teoria previa, a reação imediata dos membros da seita era de recusa à aceitação de que seu sistema de crenças era enganoso. E não apenas isso, a reação ia além disso: a frustração da expectativa pela chegada do apocalipse os levava a um apego ainda mais intenso às crenças que professavam; a expectativa não realizada tornava o proselitismo mais fervoroso.
O filósofo usa essas conclusões de Festinger e seu grupo sobre a psicologia de uma seita excêntrica para colocá-las em paralelo à concepção utópica da intelectualidade “humanista” moderna que acredita que, caso a luta pelos ideais políticos “corretos” tiver êxito, os seres humanos poderiam ser mais “racionais” no futuro e mundo poderia, necessariamente, melhorar, enquanto que, na realidade, o que a evidência da ciência e da história mostra, é que os seres humanos são apenas parcialmente e intermitentemente racionais. Logo, a partir da provocação de Gray, poderíamos concluir que a esperança utópica na política e no engajamento para modificar radicalmente a sociedade, dada a imperfeição ontológica da nossa espécie e a evidência histórica acumulada, está fadada ao fracasso.
Essa esperança de “emancipação” constitui um caso de dissonância cognitiva claríssimo com enormes consequências na história das ideias políticas que pode ser colocado em paralelo com o que ocorreu com a seita estudada por Festinger e seu grupo, que, como já dito, fortalecia as suas crenças justamente quando as evidências não as confirmavam (um dos exemplos mais claros de dissonância cognitiva presente na intelectualidade ocidental contemporânea é a manutenção da crença de que o “socialismo” ainda pode ser uma alternativa para sanar os inúmeros problemas que as sociedades capitalistas têm; essa crença aglutina uma dissonância cognitiva dupla: ela reforça a ideia de que existe uma possibilidade de aperfeiçoamento do homem e, ao mesmo tempo, postula a “benevolência” de um sistema socioeconômico que, se olharmos a experiência histórica acumulada, se revelou uma gigantesca tragédia política, econômica e moral).
Quando nós vemos intelectuais, do conforto de suas cátedras acadêmicas estáveis, pregando mudanças sociais radicais e incitando indivíduos ao engajamento no mundo público, certamente, muitos deles acabam sendo movidos por essa crença utópica de que as atividades intelectuais formais, supostamente, poderiam contribuir para a formulação de princípios que, se aplicados, criariam um “novo mundo” muito melhor do que mundo como ele é. Se há uma coisa que o século XX mostrou com clareza, é o quanto é possível criar um mundo pior sob a justificativa de que se está lutando por um “mundo melhor”.
O apelo dessa postura engagé, irresistível na academia brasileira, tem gerado grande prejuízo para as ciências humanas, a educação, e a formação intelectual dos estudantes e pesquisadores. É preciso afastar a atividade acadêmica desses delírios utópicos e reestabelecer, em certas áreas das humanidades, uma cultura intelectual que seja balizada por dois ideais que são incompatíveis com o proselitismo político: o amor pela erudição e o apego à busca da verdade.
Fernando José Coscioni
Doutor em Geografia Humana pela USP.
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